Uma breve história dos nossos quatro anos de aventuras e aprendizados à bordo de Mintaka.
Dizem que um ano de mar equivale a 10 anos de vida na terra.
Sabe por que?
Pois a vida à bordo é MUITO intensa, e eu não sabia disso.
Um dia de velejo à 7 nós (nossa velocidade máxima), que é em média 12km/hora, lá longe, no meio do mar, sem ver seres humanos, super mercados ou acessar o Instagram, realmente nos afina à um OUTRO tempo.
Um tempo que cura qualquer pressa ou urgência.
Um tempo que é vivo e alinhado ao ritmo da grande mãe Natureza.
Um tempo que é desafiador, pois ali controle é uma ilusão.
Na real controle é ilusão em qualquer lugar do mundo, mas como boa paulistana domesticada que fui, posso dizer com propriedade que na cidade já caí direitinho nessa ilusão, maquiando bem o controle com tantas zonas de suposto conforto.
No mar o tempo não é cronológico nem linear.
Não é sobre o tic tac do relógio, de segunda à domingo, ou de janeiro a dezembro.
É o tempo da presença sagrada e da observação plena, em que cada milésimo de segundo do silêncio causado pelo afastamento da matrix, parece o infinito.
Um tempo em que é preciso entrar em diálogo constante com o barômetro e o anenômetro, com as ondas e nuvens, e com tudo que se apresenta no agora.
Cada novo elemento pode significar uma mudança de rumo.
O horizonte monótono e ao mesmo tempo caótico expande as bordas da consciência.
A profundidade inimaginável abaixo gera agonia e humildade instantânea.
A imensidão acima nos relembra de nossa pequenice e da grandiosidade da vida.
A necessidade de agir conforme a realidade da impermanência melhora a visão, aguça a audição e o olfato, e ativa a ação junto da intuição.
São essas as ferramentas que mais utilizamos no mar.
A convivência ali é intensa. Peço autorização e licença poética para repetir essa palavra diversas vezes nesse texto, mas não consigo encontrar outra que descreva melhor a vida à bordo: intensa.
Uma contradição vivida em carne e osso: por um lado, navegar desperta tanta liberdade! As velas abertas são como as asas do pássaro que sempre sonhamos em ser, pronto para voar e navegar mundo afora. Por outro lado, navegar é sentir-se preso em uma cápsula, em que qualquer sinal de conflito interno ou entre a tripulação, tem de ser resolvido ali, agora.
Não há para onde fugir, nem mesmo correr ou até andar. O que um fala na proa, o outro escuta na popa. Não há privacidade. Não há espaço para uma mesa e uma cama no mesmo salão, portanto, um mesmo objeto ali tem várias funções. Uma mesma pessoa também. Tem que saber fazer de tudo um pouco, mesmo que não se saiba de nada. Tem que tentar, e dar seu melhor sempre, sem preguiça, senão o barco afunda.
Tudo começa a se misturar, as bordas da individualidade se perdem, os relacionamentos são colocados à prova. A falta de acesso às comodidades da vida na cidade ativam a criatividade, a autonomia e o improviso. Nos sentimos às vezes fracos e cansados. Às vezes corajosos e poderosos como grandes super heróis. Às vezes apaixonados, livres e cheios de tesão pela vida. Às vezes com dor no corpo todo, como dois velhos reclamões, querendo matar um ao outro ou abandonar o barco e virar petisco de tubarão. Parece uma morte interessante.
Sim, Chris e eu, durante quatro anos juntos à bordo de Mintaka, sentimos que vivemos 40 anos ali. Como já estávamos juntos quatro anos antes de comprar o barco, no total hoje estaríamos nos 44: quase celebrando nossas bodas de ouro. Mais uma vez repito: intenso.
Eu adoro contar sobre as contradições da vida no mar, pois aqueles que nunca viveram em um veleiro insistem em enxergar nossa vida como um conto de fadas da nova era Instagrammer. Me perdoem os amantes da Disney, mas contos de fada não existem. TODA escolha é uma renúncia, e é importante contar essa parte da história, pois assim ela vira real.
Nos mudamos para o mar para nos sentirmos VIVOS, já que estávamos cansados da anestesia social que aceitávamos repetir. VIVER significa "estar aberto para sentir de tudo": medo, adrenalina, amor, esperança, solidão, tristeza, raiva, tédio, ânimo, alegria, cansaço. Tudo. Sem vírgulas. A experiência humana por completa.
No mar os extremos e as polaridades se tocam. Ali não há separação. O elemento água carrega essa qualidade. Não por acaso o mar une todos os continentes e é o único lugar na Terra, onde o ser humano não pode construir muros.
Em homenagem à essa frase que tanto gostamos: nossa obra Vida Sem Muros, por pirata Elena Landinez, disponível na Loja.
Ali, nossos muros internos também caem, e de repente tudo parece possível.
Navegar sob as estrelas num mar repleto de plânctons já nos fez achar que estamos numa nave espacial.
Velejar ao lado de centenas de baleias nos conectou com nossos ancestrais.
Ver o eclipse com golfinhos e estrelas cadentes nos fez achar que estávamos sim dentro de um conto de fadas.
Não dormir a noite inteira, tremendo de frio de tão molhados, com vento forte e tempestade caindo, nos fez acordar do conto de fadas.
Sentir medo, muito medo dos relâmpagos que iluminavam o breu no mar, nos fez agradecer pela vida e rezar para o raio não escolher nosso mastro como para-raios.
Vida e morte juntinhos. Luz e sombra. Medo e amor.
O primeiro raio a gente nunca esquece.
Minha avó já dizia: "Quem não arrisca, não petisca".
Confesso que era mais confortável na época que eu tomava banho quentinho e dormia numa cama que não se mexia na casa do meu pai.
Mas não escolhemos essa vida pelo conforto físico, e sim pelo conforto pra alma, que adora tudo aquilo que é desconfortavelmente vivo.
Morar no balanço do mar foi a oportunidade de colher tesouros e passar por provas inimagináveis sobre a arte de viver.
Foi por isso então que nos mudamos pro mar e começamos o projeto que vos fala, Piratas do Amor. Não faria sentido viver toda essa experiência sozinhos. Queríamos criar um espaço que acolhesse mais almas corajosas, questionadores do status quo, buscadores de propósitos, criadores de um mundo melhor, para JUNTOS, navegarmos os sete mares em busca de novos horizontes de vida na Terra.
Chris, o rapaz das montanhas, e eu Raíssa, a garota da cidade, juntos demos um salto de fé para viver esse sonho junto de vocês. Se quiser, conheça aqui a história de como e quando compramos nosso primeiro barco - Mintaka.
Em 4 anos, ou melhor, 4 décadas, muito aconteceu.
Iniciamos nossa história náutica com base em Ilhabela, e foi ao redor daquela ilha e na região entre Ubatuba e Paraty, que aprendemos a navegar. Como na vida real, aprendemos errando. Não fizemos curso nem nada. Fizemos sim muita besteira, e agradecemos aos anjinhos que nos acompanharam nas tantas situações que não tínhamos ideia do que estávamos fazendo.
Barco na poita em Ilhabela, em dias tranquilos.
Barco na poita em Ilhabela, em um dia não tão tranquilo.
Já no segundo mês após a compra de Mintaka, estávamos recebendo grupos à bordo, não só de amigos e familiares, mas também de nosso novo trabalho: Sea Beyond - nome desse projeto na época.
Um agradecimento especial à todos que confiaram na gente, mesmo sem sequer termos a carteira de habilitação para navegar em águas abrigadas - Arrais Amador. Seis meses depois da primeira travessia, finalmente tiramos o Arrais, que não nos ensinou nada, mas pelo menos nos deu permissão perante à lei de seguir nessa loucura. Um ano e meio depois, viramos Mestre Amador. Falta Capitão - em breve seremos.
Mas a real é que nenhum diploma ensina a navegar. E como diz o ditado: "Mar calmo não faz bom marinheiro".
Nesses quatro anos pegamos alguns mares não calmos, passamos por inúmeros perrengues, quase perdemos o leme, batemos o barco, âncora garrou, a gente se machucou, vomitou, chorou e brigou.
Aprendemos muito, muito mais que nossos 4 anos de faculdade ou qualquer outro curso que já havíamos feito. Aprendemos não só sobre navegação e sobre a natureza, mas sobre a arte de navegar pela própria vida com mais maestria, e sobre nossa própria natureza humana, essencial e selvagem.
Enquanto aprendíamos e errávamos, oferecemos várias travessias e expedições de autoconhecimento e desenvolvimento humano, como parte de nosso primeiro programa "Sea Beyond Sessions" online e à bordo.
Fizemos também uma reforma no barco, junto de uma reforma em nós mesmos. Chegamos no nosso limite físico, emocional e mental, depois de lixar e respirar Thinner por 7 meses seguidos. Quase terminamos o relacionamento e abandonamos o barco no estaleiro, mas nossa missão e sonho seguia falando mais alto que a mente ou o ego. E no final, conseguimos o que queríamos: preparar o barco para subir a costa e conhecer cada parafuso, mangueira e fiação dessa nossa nave chamada Mintaka. Foi nossa maior superação. Temos orgulho dessa fase, pois aprendemos a colocar a mão na massa e trabalhar juntos, literalmente, para construir nosso sonho com nosso próprio suor.
Saímos do estaleiro em Santos no Natal de 2019 e iniciamos uma longa e lenta travessia até Alagoas, que durou aproximadamente 2 anos.
Primeira travessia pós sete meses de estaleiro. Sem vento, mas com nascer do sol espetacular e inesquecível.
Ancoramos em lugares maravilhosos e paradisíacos.
Aprendemos a pescar, a não precisar de geladeira, a viver com mais saúde, sustentabilidade e autonomia.
Muita coisa no barco quebrou. Muita coisa a gente concertou.
Conhecemos mestres escondidos em pequenas comunidades que, em plena pandemia que assombrava o mundo, viviam a riqueza de caminhar sem máscara, de se abraçar diariamente, e de desfrutar da abundância de uma vida saudável, simples, natural e sem medo.
Na Baía de Camamu, onde ficamos quase um ano, aprendendo com tantos amigos que o mar, o rio e o mangue nos deram.
Recebemos mais e mais tripulantes. Pintamos a vela mestra de nosso barco com um grande artista e irmão de alma: Ativista do Sentir.
Falando em arte, realizamos residências artísticas e criamos obras de artes inéditas, que posteriormente foram produzidas em uma residência em terra com todos os piratas juntos, e vendidas em uma loja online para arrecadar fundos para o próximo grande veleiro pirata.
Nos transformamos nos Piratas do Amor, pois Sea Beyond já parecia um nome pequeno perante o grande sonho.
O arquétipo do pirata sempre nos fascinou, afinal, piratas viviam em comunidades, se ajudavam e se apoiavam, eram corajosos, destemidos, ousados e sonhadores.
É isso que queríamos ser, mas obviamente sem matar ou roubar ninguém. Somos guerreiros sem armas, e para nós, o amor é a grande revolução.
Piratas do Amor: um laboratório de utopias possíveis em alto mar, praticando uma nova cultura de se viver na Terra.
Quatro anos se passaram, morremos e renascemos algumas vezes.
Quase afundamos o barco, mas nunca paramos de navegar.
Aliás, navegamos mais de 3mil milhas de Santos até Barra de São Miguel/AL.
Recebemos mais de 100 tripulantes como parte de nossos programas.
Realizamos 5 Residências Artísticas com 12 artistas diferentes à bordo.
Produzimos 5 obras de arte, e algumas músicas autorais.
Recebemos mais de 15 voluntários para reformar o barco no estaleiro.
Produzimos um Funk, saca só.
Produzimos também um vídeo para a Corona, chamado Vida sem Muros.
Lançamos a Academia Pirata e realizamos duas formações de Terapia Aquática à bordo.
Se não fosse a pandemia, quase fechamos turmas para uma vivência de Medicina Natural e outra de Fermentação Selvagem à bordo. Fica pra próxima. ;)
Oferecemos mais de centenas de horas de mentoria online, com foco em autoconhecimento e empoderamento pessoal.
Recebemos muita ajuda e tivemos a honra de conhecer mestres das mais diversas áreas, que nos ensinaram sobre elétrica, marcenaria, manutenção geral, mecânica, meteorologia, pesca, produção de cosméticos naturais, alimentação saudável, costura, remo, mergulho, panificação, e até mesmo um pouco de navegação astronômica.
Aprendemos tanto e ainda sentimos que não sabemos nada.
A vida no mar é uma escola eterna, e aquele que ousa achar que de tudo sabe, é inevitavelmente pego de surpresa e cai do cavalo. No caso, cai do barco, leva caldo, se afoga, dá ruim.
O mar é muito maior que nós. Manter-nos humildemente em nosso poder pessoal e coletivo, é o único caminho.
Por isso chegamos até aqui.
Abertos para aprender, evoluir e compartilhar o sonho dos Piratas do Amor com o mundo, sentimos que essa fase chegou ao fim. A missão de Mintaka está cumprida conosco, e agora é a hora de passar esse barco-nave para uma próxima família pirata, para que então possamos ir em busca de nosso próximo barco. Sim, Mintaka está à venda (se quiser comprar, clique aqui).
Todo fim é um começo.
O sonho está apenas começando, e como diz um amigo-mentor que o mar nos apresentou:
"O segredo do sucesso está na capacidade de continuar sonhando" Deivis, capitão do veleiro Fúria
Mais fortes que nunca, estamos prontos para trimar nossas velas agora em terra e realinhar nosso rumo: Volans, aqui vamos nós.
Nosso período entre barcos vai começar.
Avante! Que o mar é gigante e intenso!
Navegar é preciso.
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