Como tudo começou: movidos por um sonho e uma pitada de loucura e impulsividade, contamos aqui como foi que viemos parar no mar!
Nossa primeira foto com Mintaka, logo que a compramos. Olhos de empolgação e desespero: o que foi que fizemos?
Desde o nosso primeiro beijo oito anos atrás, havia um sonho em comum: viver nômade por esse mundão. De preferência movidos por vento e água salgada.
Mas eu, Raíssa, não sabia nem o que era uma retranca ou o mastro de um veleiro.
Chris até sabia velejar, mas sem ideia de como cuidar de um barco e mantê-lo boiando. Afinal, nos diziam que velejar era a parte mais fácil da brincadeira.
Também não tínhamos dinheiro para comprar um veleiro.
O que tínhamos era uma lista recheada de argumentos fundamentados em medos, que enchiam nossa cabeça de minhoca, sobre o porquê não deveríamos viver nosso sonho naquele momento.
"Um dia estaremos prontos".
Ou será que "estar pronto" é uma escolha?
Por um bom tempo esses medos falaram tão alto que estávamos meio surdos e anestesiados.
Até que a alma resolveu gritar com aquela elegância que só ela tem, e seu chamado se tornou impossível de ser ignorado.
Permanecer onde estávamos parecia mais assustador que dar um salto de fé rumo ao desconhecido.
Há anos o chamado chegava pra mim nos mais variados formatos: nos sonhos enquanto dormia, nos sonhos acordada, visões em rituais de Ayahuasca, Pai de Santo em terreiro de Umbanda, e muito mais. "Vai pro mar minha filha", era o que eu ouvia.
Eu não conseguia parar de pensar no mar um só dia. Um sonho que, se eu não o vivesse, provavelmente logo se tornaria em uma obsessão frustrante sobre minhas próprias não-escolhas.
Janeiro de 2018: o chamado final.
Durante um trabalho de autoconhecimento em Ilhabela, uma atividade chamada "Salto de Fé" nos convidou a saltar de uma pedra direto pro mar, visualizando qual seria a mudança que queríamos para nossas vidas naquele momento.
Enquanto Marc - meu melhor amigo e facilitador da expedição - explicava a atividade, eu (que não suporto saltos de pedras) já estava tirando a camiseta e me preparando para pular. Uma força maior que eu me chamava. Era o mar repetindo em voz alta e bom tom: "Vem pra mim, minha filha". Fui a primeira a saltar. E com lágrimas escorrendo pelo meu rosto, saí do mar tremendo de emoção por finalmente entender o que tinha que fazer.
O salto de fé em direção ao meu maior sonho: o mar.
Voltei para São Paulo animadíssima para encontrar o Chris e contar a novidade: precisávamos mudar nosso plano! Afinal, estávamos prestes a comprar um Toyota Bandeirante e transformá-lo numa casa nômade pelas estradas.
Fazendo o teste drive da caminhonete que quase virou nossa casa, mas depois se transformou em um veleiro.
A casa nômade ainda era parte do plano. Mas não seria pelo asfalto, e sim pelos sete mares.
Aquela foi uma das noites mais especiais de nossas vidas.
Por sorte, ou melhor, por sagrado destino e missão compartilhada, Chris voltou da viagem dele com a mesma conclusão: ele também queria morar no mar.
"É isso! Cancela a compra da caminhonete! Vamos comprar um veleiro, viajar o mundo e criar um espaço de aprendizagem livre no mar!" - foi o resumo daquela noite. Uma noite regada à vinho, desenhos sobre nosso projeto em um grande flip chart na sala da casa do meu pai, e muita emoção e empolgação que irradiava por nossos poros.
Um momento histórico na vida, definitivamente, é quando se decide ocupar seu espaço na Terra e realizar seu sonho mais profundo. Se você não fizer isso, ninguém o fará por você.
Dia seguinte, de ressaca e transbordando entusiasmo, pegamos o carro e dirigimos para o local mais próximo, onde poderíamos encontrar veleiros à venda.
"Ilhabela! A capital da vela! É pra lá que vamos!" - diz Chris, supondo que ali seria um bom começo de uma "missão sem noção".
Imagina aí: você decide comprar um carro sem saber dirigir. Chega na concessionária, e pergunta o que?
Foi o que aconteceu. Batemos na porta da primeira Marina que encontramos, dizendo: "Oi tudo bem? Queremos comprar um veleiro!"
"Qual tipo de veleiro? Quantos pés? Que tipo de casco?", entre muitas outras perguntas que aquele rapaz me fez logo de cara.
Respondi "não sei" pra todas elas. Mas repetia: "Quero morar em um barco!"
Fico imaginando o que aquele primeiro vendedor pensou de nós naquele momento. Um mix de "vixe, esses dois vão afundar o barco", com "que bonitinhos, tão inocentes".
Às vezes a ignorância é realmente uma benção. Talvez se eu soubesse de todos os detalhes de uma vida à bordo naquele instante, eu não teria tido a coragem de seguir no plano. Mas o sonho da criança inocente teve seu papel: o de insistir na busca, sem descansar um segundo sequer.
Conhecemos um, dois, três, dez, vinte barcos.
Velejadores. Brokers. Marinas.
Sem parar.
Não tínhamos tempo à perder! O sonho era para ser vivido AGORA.
A dica de todos era: "Por que vocês não aprendem a velejar antes? Que tal fazer um charter, alugar um barco, ver se é isso mesmo que vocês querem? E depois vocês compram um barco de vocês?"
Agradecemos pelos conselhos, e com amor, ignoramos todos eles. Sabíamos o que queríamos. E não questionamos aquela loucura nem um segundo.
Viajamos de Ilhabela para Ubatuba, depois Paraty, Angra dos Reis, Rio de Janeiro e Niterói. Pesquisamos em todos os blogs sobre vela, lemos e estudamos tudo que podíamos, falamos com todas as pessoas possíveis do ramo, fazíamos perguntas, anotávamos tudo em nossos cadernos. Só falávamos disso. Meu lado nerd estava aguçadíssimo, criei planilhas com todos os detalhes da busca, e em questão de dias já sabíamos um pouco sobre motor, estaiamento, velas, cascos, e o mínimo necessário para não comprar um trator achando que era um veleiro.
Conhecendo veleiros por aí...
Aos poucos fomos entendendo qual tipo de barco era o ideal para a nossa iniciação náutica. De tudo que vimos durante nossa pesquisa, o melhor projeto de barco para nós parecia ser um Brasilia 32 ou um Peterson 33. Tínhamos gostado muito mais do Peterson, mas a verdade é que tinham pouquíssimos disponíveis no mercado, enquanto os Brasílias estavam abundantes.
Não somos do tipo de nos conter com algo "mais ou menos", tipo uma paixão morna. Eca.
Como diz o Chris: "If it is not a HELL YEAH! It`s a no!"
Traduzo para o português da seguinte forma: "Se não for um É ISSO MESMO C*R@LHO!!! É um NÃO!"
Foram três semanas em busca de nosso veleiro "Hell Yeah!"!
Semanas tão bem aproveitadas, que pareceram até três meses.
É impressionante como o tempo parece se expandir quando se vive no presente.
Estávamos em puro flow.
Enquanto dirigíamos do Rio de Janeiro de volta pra São Paulo, pela primeira vez a frustração bateu na porta:
"Será que não vamos encontrar nosso veleiro?"
"E agora?"
"O que fazemos?"
No caminho, avistamos a Catedral de Aparecida.
Decidimos parar para conhecer.
Não somos religiosos, mas fé é o que não falta para nós, e é inegável que aquela Catedral é um grande templo espiritual. Além disso, Chris carrega uma tradição de sempre acender velas para seus avós - seus grandes mestres, que já fizeram a passagem há anos.
Aparecida tem um "velário" (não sei se esse é o nome oficial, mas é assim que chamo aquele lugar pra acender velas) surreal de especial. Uma energia fortíssima reina naquele salão de pé direito alto, lotado de velas de todos os tipos e formatos, acendidas por pessoas do mundo inteiro em oração por entes queridos, sonhos, intenções e pedidos que nascem no fundo do coração.
Fomos na lojinha e compramos a maior vela que eles tinham ali. Para você ter uma idéia, era uma vela maior que o Chris - que já é alto. Devia ter uns 2 metros a bendita!
A vela maior que o Chris.
Juntos, fizemos uma oração para o nosso sonho e acendemos a grande vela que representava nosso sonho do veleiro.
Vela. Veleiro.
Qualquer semelhança é mera coincidência.
E lá ela ficou queimando, enquanto dirigimos de volta para casa.
Chegamos cansados em São Paulo naquela mesma noite, e enquanto Chris abria uma nova garrafa de vinho, eu resolvi checar uma última vez o site de anúncios de veleiros ( àquela altura do campeonato, eu já conhecia cada barco no site de cor e salteado).
"Eita!" - gritei no instante em que reparei que tinha um novo barco sendo anunciado: "Veleiro Mintaka, Peterson 33".
Nem precisei ler a descrição, pois só de ver a primeira foto, comecei a chorar.
Emocionada, avisei o Chris: "Amor! Achamos nosso barco! É esse!"
Chris olhou a foto e também chorou.
Bebemos o vinho, comemoramos, ligamos para o dono, descobrimos que o barco estava no Rio de Janeiro, e pra lá decidimos voltar na manhã seguinte.
Se foi a vela em Aparecida, eu não sei.
Mas sei que a força de uma intenção verdadeira tem sim o poder de manifestar a realidade que queremos.
Fomos conhecer Mintaka, e em instantes a certeza ficou escancarada: era essa a nossa nova casa. Nos apaixonamos por aquelas curvas, casco forte e estofados azuis. Nos apaixonamos pelo barco velejando, em movimento suave junto das ondas. Nos apaixonamos por aquele nome forte: Mintaka. Quando li pela primeira vez, achei que era o nome de uma guerreira japonesa - o que tinha amado. Mas depois descobri que Mintaka é uma estrela: uma das Três Marias, do Cinturão de Orion - gostei mais ainda.
Ainda tínhamos um desafio pela frente: grana.
O valor que Alberto (antigo dono) pedia era o dobro do que tínhamos. Mas não nos abalamos: escrevemos uma proposta para ele contando sobre nós e nosso projeto (que na época se chamava Sea Beyond), e fizemos uma contra proposta.
Ele amou o pdf que enviamos para ele, e logo retornou oferecendo um valor um pouco acima daquele que pedíamos. Aceitamos na hora!
Em poucos dias agilizamos TUDO: vendemos meu carro, pedimos 2 empréstimos para meu irmão e nosso melhor amigo, fizemos as malas, transferimos o valor, assinamos contratos, pegamos um ônibus de volta pro Rio, e pronto!
Quando nos demos conta, acordamos em um veleiro chamado Mintaka, que não sabíamos navegar, mas que já chamávamos de casa. Alberto foi nosso primeiro mentor, e teve a paciência de passar uma semana inteira nos explicando o que significava cada botão, utensílio e equipamento do barco. Depois de Alberto, chegou Tony: o skipper que virou nosso amigão, e que contratamos para levar o barco do Rio de Janeiro para Ilhabela. Junto de Tony, nasceu meu primeiro dicionário náutico, onde comecei a registrar as palavras novas que eu aprendia, já que no mar, direita é boreste e esquerda é bombordo.
Da esquerda para direita: 1. Chris, eu e Alberto no convés de Mintaka logo que nos mudamos, brindando com uma cervejinha gelada; 2. Alberto nos ensinando a mexer nos instrumentos de navegação; 3. Tony, Chris e eu na primeira travessia, do Rio para Ilhabela.
Voltei pro Jardim da Infância. Como é bom aprender algo novo.
Conhecimento técnico e prático sobre navegação não tínhamos mesmo, mas uma coisa sabíamos fazer: sonhar e realizar.
Esse combustível seria o suficiente para que todos os próximos passos necessários se apresentassem naturalmente.
De mãos dadas, Chris e eu demos nosso maior salto de fé da vida até então, e aterrisamos em nosso primeiro lar no mar: Mintaka.
Onde tudo começou.
Primeira linha de fotos: em frente à Mintaka, ainda no seco.
Segunda linha: Chris de mudança antes de entrar no barco. E nós em travessia para Ilhabela.
Terceira linha: eu nos primeiros dias de vida à bordo.
"Sonhos são coisas perigosas. A gente não decide tê-los, nem define como serão. Eles nascem por eles próprios, crescem em silêncio e espalham raízes nas nossas escolhas todas. Sem a gente perceber, os sonhos já nos são." Tamara Klink
Vídeo sobre a nossa grande busca por Mintaka.
Ahooo! Que relato lindo. Muita admiração pelos caminhos náuticos de vocês dois.